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quinta-feira, 14 de maio de 2009

Mestre Martim da Pemba - pai de Mestre Curió

Mestre da cana-de-açúcar
Seu José Martins dos Santos, Mestre Martim da Pemba ou Mestre Pena Dourada recon
ta as histórias de 101 anos de travessuras na velha Salvador

Por José Castro

CORREIO DA BAHIA

04 de agosto de 2001

Capa Bode, vilarejo próximo a Passagem do Teixeira, distrito de Candeias. Nesta localidade, incrustada no massapê açucareiro dos engenhos que arrodeavam Salvador, nasceu no final do século retrasado, certamente o feirante mais veterano em atividade de Salvador, quiçá da Bahia e olhe lá se não for do Brasil.

Seu nome é José Martins dos Santos, 101 anos, mais conhecido na Feira de São Joaquim, onde tem um boxe, pelo apelido de Martim da Cana, designativo cunhado pelas gentes que o arrodeiam: carregadores, cachaceiros, feirantes. Trabalha em calça de brim, camisa de botão, paletó e chapéu de feltro na cabeça, uma pena de pavão serve de adorno. No domingo ele usa gravata, único dia em que lhe é coberto o medalhão prateado que ostenta, com as inscrições Portela e Pastinha. Vive de vender a cana que planta em sua roça, em Mapele, distrito de Simões Filho. Registrado no tempo "em que cinco vinténs era um tostão", ele argumenta que tem mais idade de que lhe é atribuído: "Cento e um já passei pra detrás das costa", explica.

Ângulos peculiares não faltam para começar a falar de sua vida. A começar pelo número de filhos que ele diz ter feito: 56, ao todo. "Mulher, eu fui casado com seis. As outras não sei nem quantas foram, neto nem bisneto, ninguém sabe contar, mas tataraneto é só um, que mora em Candeias", enumera. Tendo passado a infância em Candeias, Martim, como gosta de ser chamado, caiu no mundo aos 13 anos. A mãe enviuvara, logo arranjou marido e ele, como não foi com a cara do padrasto, seguiu o "rumo da venta", indo para Salvador e trabalhando em várias cidades do recôncavo baiano depois. Já foi açougueiro, servente de pedreiro, trabalhador de engenho, de usina. "Tudo eu olhava e aprendia ", confessa.

Cabrochas e boemia

Mas se no campo das profissões nunca lhe faltou trabalho nas rodas de samba do recôncavo e da capital foi bamba. Com a mesma freqüência que tocou viola e pandeiro, traçou as cabrochas que lhe apareceram pela frente. Meu canarinho/que cantou na bananeira/Minha gente vamo embora/Que amanhã é segunda-feira", cantarola em ritmo de samba-de-roda. "Meu esporte era samba, viola e mulher", evoca, "ah, e trabalho também", completa o malandro. Na década de 20, a Rádio Sociedade chegou a abordá-lo para que gravasse um dos seus sambas mas "você foi lá? Nem eu!", gargalha, bonachão, na sala de sua modesta casa, na Avenida Voluntários da Pátria, no Lobato, em frente à linha do trem.

Uma das cenas mais belas de se ver é quando mestre capoeirista faz o jogo de facão, que aprendeu "rapazinho", aos 16 anos. Arte afro-marcial pura. Nas rodas em que coreografa esta espécie de reza de fação, o público entoa: "Meu canarinho/quem te trouxe nessa terra?/ Foi a prima dessa viola/Foi a filha dessa donzela/E adeus Cazumbá/ E você, como tá?". No ritmo, ele vai dançando, levanta uma perna e cruza as armas por baixo, faz o mesmo no lado esquerdo do quadril, do direito, na altura da testa, e cruza por fim os facões nas costas, no pé da coluna.

Lendas antigas

Mas se no presente Martim ainda trabalha, afastando o idoso conceito de que velho é sempre um ente improdutivo (tem uma roça em Mapele, distrito de Simões Filho, onde pessoalmente planta e colhe o que vende), suas memórias e crenças testemunham o imaginário em extinção das lendas brasileiras. Afirma não ter visto ("e eu sou besta de ficar pra ver? ") mas tem certeza de que havia em Candeias e imediações lobisomem e mula-de-padre (mais conhecida como mula-sem-cabeça). "Tinha o lubisome branco e o preto. Eu trabalhava em um açougue e quando cortava carne de boi no cepo, de dia, a noite ele vinha comer os restos", relembra. Já a mulher de padre, "era uma mulher que teve um caso com o padre Antônio, que me batizou, lá em Candeias. A mula, diz que dava uma mijada daqui pra lá, no alto das árvores, acabando com tudo. Diz que quando ela passava de longe se ouvia os balangandãs dos ferros, que ela tinha amarrada. Aí para não ser visto tinha que esconder unha do pé e da mão, enfiando na terra, aí ela passava longe", conta.

No meio da entrevista, seu Martim é interrompido. Um rapaz chega de boné em sua porta e pergunta: "Seu Martim, o senhor vende essas telhas que tão aí? "Vendo. Tem umas oitocentas aí, porque eu troquei por Eternit", explica o feirante. "Um rapaz vendeu 500 por R$15 e essas aí tão velhas...", argumenta o moço, como quem não quer nada. Seu Martim replica: "Você sabia que tem coisa velha que é melhor que coisa nova? Aí é só limpar. Não tá vendo você, muderno assim? Eu tô cinco anos doente, se não fosse isso nós ia se ispaiá no terreiro", gargalha ele.

Nos tempos de novo, Martim era chegado no barulho, como ele chama as confusões em que a navalha e a peixeira se cruzavam ou caíam por terra, derrubadas nos truques da capoeira angola ou na bala mesmo. Foi aluno do mais lendário dos capoeiristas baianos, Besouro, quando morou na quase mítica Maracangalha. "Besourinho de Ouro gostava do barulho, batia em cinco, seis home, gostava de brigar, agora só com polícia. Uma vez nós tava na feira, em Maracangalha, quando ele disse: "Chegou uns polícia aqui, saia daqui porque você não sabe o salto''. Foi morto depois, na traição", relata. "A vida é grande, rapaz, é muita história, agora eu já não posso mais beber mas tô aqui. Tô quereno ver se tiro os dente agora pra botar uma dentadura, pra ver se arranjo aí alguma mulher...", finaliza o centenário feirante, de bom humor com a vida e candidato a Dom Juan.


fonte:

http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=13170&id_noticia=1050

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